top of page

O que há de Nerd nos fãs de Tolkien?

Por Mirane Marques

Quando meu querido amigo Bilbo (conhecido também como Jorge), do Clube Literário Tolkieniano de Brasília, discutiu comigo a possibilidade de a gente escrever algo para o Dia do orgulho nerd, a primeira coisa que disse foi “vamos falar de George MacDonald!”. Porque na minha cabeça a associação foi George MacDonald à Tolkien à coisa de nerd. Já deixo claro que não vou escrever aqui um texto acadêmico sobre o que é e o que não é nerd, até porque eu não tenho ideia, vou com o senso comum que gostar de fantasia, quadrinhos, ficções científicas, espaço, dinossauros e mais um monte de coisas é nerd e pronto. Eu tinha tudo muito bem planejado, mas no primeiro passo do plano já encontrei um obstáculo. O primeiro passo era ler Phantastes, de MacDonald, autor escocês do século XIX. Já li uma vez, em 2013, logo após ler At the Back of the North Wind, também dele. Este último é um dos melhores livros que já li na vida e, claro, sendo contida como sou, quis ler tudo do grande escritor que inspirou Tolkien, Lewis e tantos outros. E foi aí que li Phantastes. Na época eu consegui evitar falar mal do livro, só dizia “At the Back of the North Wind é muito melhor” e deixava o assunto morrer, mas, agora, estamos em 2021 e eu já tinha me esquecido completamente disso e fui seguir com o meu plano de reler Phantastes. Comprei a linda edição da Thomas Nelson Brasil de capa dura, introdução do Lewis e, depois de ler umas dez páginas, eu pensei “isso é pior do que eu lembrava”.

Pessoal, tenham em mente que este é um relato de experiência, minhas experiências, portanto estou apenas expondo a minha opinião e não falando que o livro é ruim e tentando te convencer a não ler. Não, nada disso. Tenho muita certeza que Phantastes pode ser o portal para muitos leitores adentrarem o Reino Feérico, só não foi para mim.

Bem, continuando, comecei minhas pesquisas sobre George MacDonald já que, mesmo sendo doutora em fantasia, nunca o estudei. E então eu li a carta 262 de Tolkien para a editora que lhe pedira para escrever uma introdução para The Golden Key (A chave dourada), do escritor escocês, e fiquei com uma pulguinha atrás da orelha, já que Tolkien escreve “Não sou um admirador tão entusiasmado de George MacDonald quanto o era C. S. Lewis” (p. 333). Na minha cabeça o Tolkien amava o MacDonald e o plano que eu tinha era mostrar como Ferreiro do Bosque Maior (2021), na verdade, era uma homenagem a Phantastes. Devido à declaração de Tolkien na carta, fiquei incomodada em seguir com o plano antes de pesquisas adicionais e, então, encontrei esta entrevista do autor de O Senhor dos Anéis para Henry Resnick “ [...] But I didn’t intend these things, because I didn’t write it for children. That’s why I don’t like George MacDonald very much […]” (“Mas eu não pretendia isso porque eu não escrevia para crianças. É por isso que eu não gosto muito de George MacDonald.”). Aí pronto, já sabia que meu plano tinha ido por água abaixo. O que vocês precisam saber é que eu nunca questionei o amor de Tolkien por MacDonald. Eu ouvi ou li em algum lugar e aceitei como verdade, essas descobertas foram chocantes para mim. Então mandei mensagem para o Bilbo e disse “olha, não vai dar, não vou conseguir escrever sobre Phantastes porque não estou nem conseguindo ler, lembrava de ser melhor e também descobri que o Tolkien nem gosta dele tanto assim. Vou escrever só sobre Ferreiro.”. E aí começou a pesquisa sobre a obra e, enquanto lia, mais um choque. Ferreiro do Bosque Maior começou a tomar forma como a introdução encomendada de The Golden Key, isso eu sabia, mas o que eu não sabia era que havia uma versão estendida de Ferreiro. E aí lembrei que muito tempo atrás eu comprei uma edição em inglês e, vejam só! É a versão estendida! Esta edição conta com vários complementos, incluindo manuscritos e um texto excelente de Verlyn Flieger.

Em um dos textos presente nesta versão de Smith of Wootton Major, Tolkien afirma “


But I found that a highly selective memory had retained only a few impressions of things that moved me, and re-reading G. M. critically filled me with distate. […] ‘Phantastes’ wakened him, and afflicted me with profound dislike. It is better anyway to preach by example than by criticism of others. But Smith remains as it were ‘an anti-G.M. tract’. (p. 85-86) (Mas eu percebi que minha memória seletiva tinha apenas capturado algumas impressões das coisas que me emocionaram e relendo G. M. criticamente me enchi de desgosto. [...] ‘Phantastes’ o acordou e me encheu de desgosto. No entanto, é melhor ensinar dando o exemplo do que criticando os outros.)


Em primeiro lugar, eu dei muita risada porque isto foi praticamente o que eu disse ao Bilbo. Em segundo lugar, percebi que Ferreiro do Bosque Maior não era uma homenagem a Phantastes, mas uma crítica. Então vamos falar sobre esta obra incrível.

Ferreiro do Bosque Maior, como disse anteriormente, começou como uma introdução a um livro de George MacDonald, The Golden Key, mas acabou tomando vida própria e se tornando o que conhecemos hoje. Eu não li A chave dourada, mas, pelo que lembro de Phantastes, o autor escocês busca mostrar aventuras de mortais em Feéria, o Reino Encantado e Perigoso. Tolkien, quando aceitou o desafio de escrever a introdução, já tinha em mente que queria, na verdade, expor o fato de que, para ele, os meios adotados por MacDonald de explorar Feéria não eram o ideal e ele tenta mostrar em Ferreiro como fazer, como oferecer esse vislumbre do Reino Perigoso. É Tolkien dando o exemplo de como fazer ao invés de simplesmente criticar, como ele afirma na citação acima.

Mas e quanto ao Reino Perigoso? Nossa, eu escrevi uma tese sobre isso e mesmo assim tenho dificuldade de explicar, porque Feéria é quase impossível de descrever, o que podemos fazer é sentir. Mas para tentar ser mais direta, digamos que o Reino Encantado é aquele outro mundo, não o nosso, mas o de elfos, gigantes, hobbits e também árvores, rios, estrelas. É o que chamamos de mundo secundário, um mundo diferente do nosso e que não nos deve nenhuma explicação desde que faça sentido internamente. E eu achei isso um bom tema para o dia do orgulho nerd deste ano, afinal, o que pode ser mais nerd do que mundos imaginários, fantasiosos ou científicos? Pode ser a Terra-média, Nárnia, Hogwarts ou o mundo de Star Wars, Star Trek, O guia do mochileiro das galáxias.

Não é sempre um caminho fácil. Muita gente julga quem gosta de fantasia, quadrinhos, ficção científica; muita gente aponta o dedo e diz “você é menos inteligente que eu porque eu gosto de James Joyce e você de bruxinhos”. Quem nunca ouviu isso? Eu ouvi milhões de vezes, muitas delas chorando de raiva nos corredores da universidade. Posso dizer que meu mestrado e doutorado saíram na base do ódio de quem me falava essas asneiras. No início eu respondia “sou alienada mesmo, graças a Deus”, mas depois passei a dizer “querido, se inventar outro mundo para fugir deste não é uma crítica a nossa realidade, eu não sei o que é”, porque, sim, esse era o principal argumento dos chatonildos. O que quero dizer aqui é: não tenham vergonha de gostar do que vocês gostam só porque alguns idiotas se julgam superiores. Gosta de gibi da Turma da Mônica? Ótimo! Eu também! E, gente, vale muito lembrar que, de maneira nenhuma, uma coisa anula a outra. Você pode gostar de Crepúsculo e Goethe, olha só! Não tem nenhuma lei que proíbe. Você pode acabar de ler Homero e começar Harry Potter. NADA TE IMPEDE. É possível gostar de duas coisas ao mesmo tempo e ninguém deveria sentir vergonha disso. Para algumas pessoas fugir da nossa realidade é tudo o que elas têm, então, sim, tenha orgulho de viver parte da sua vida em outros mundos.

Agora, se você, por algum acaso, estiver procurando por um vislumbre de Feéria, nem que seja apenas uma espiada, sugiro Ferreiro do Bosque Maior. De novo, não posso dar spoilers, mas garanto que você ficará encantado com a suavidade do texto e o modo exemplar que Tolkien nos mostra como explorar o Reino Perigoso.

No início, o relato era chamado de The Great Cake, mas Ferreiro foi publicado pela primeira vez em 1967 como Smith of Wootton Major, tanto na revista Redbook, número 130 (com ilustrações de Milton Glaser), quanto em formato de livro (com ilustrações de Pauline Baynes). A narrativa começou a ser escrita em 1964, como prefácio para The Golden Key, como já falei, e foi a última obra escrita por Tolkien e a última a ser publicada enquanto o autor ainda estava vivo. Em 1969, a editora Ballantine Books publicou Smith of Wootton Major and Master Giles of Ham; em 1975, a história foi publicada com Leaf by Niggle e The Homecoming of Beorhtnoth Beorhthelm’s Son. Em 1980 a aventura de Ferreirinha aparece na coletânea Poems and Stories e em 1997 em Tales from the Perilous Realm. No ano de 2005 saiu a edição estendida e organizada por Verlyn Flieger, que citei acima, e em 2015, a Harper Collins reeditou esta versão, que conta com as ilustrações de Pauline Baynes.

Já no Brasil, a primeira edição foi publicada em 2015, pela Martins Fontes, como Ferreiro de Bosque Grande. Este é a mesma versão estendida organizada por Flieger e conta com a tradução do nosso ilustre Ronald Kyrmse. Na edição mais recente, publicada pela Harperkids como Ferreiro do Bosque Maior, temos apenas a história, sem os textos estendidos, e, no final, uma bela galeria de ilustrações de Pauline Baynes. A tradução, mais uma vez, feita pela querida Rosana Rios, é maravilhosa e o livro tem capa dura e o mesmo formato diminuto de Roverando e Mestre Giles d’Aldeia, formando uma coleção linda.

Bem, este texto já está longo demais, então vamos encerrando por aqui. Espero que vocês levem em consideração meu conselho de ter orgulho das suas nerdices e que se interessem por este livro de Tolkien que é um portal para o Reino Perigoso, assim como muitas outras histórias por aí que estão aguardando o momento de nos permitir um vislumbre do Reino Encantado. Keep Calm (Fique calmo), continue procurando e que a Força esteja com vocês!

 
 
 

Comments


Post: Blog2_Post

61982924423

©2020 por Clube Literário Tolkieniano de Brasília. Orgulhosamente criado com Wix.com

bottom of page